Fernando Pessoa como todos sabem é aquele poeta que tinha a
mania de ser várias pessoas. E não é que ele era várias pessoas porque gostava
de fazer personagens, ao contrário, dos heterônimos mais estudados: Álvaro de
Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, além da historinha que o próprio
ortónimo criou para cada um deles, o estilo de cada um é realmente diferente.
Isso é muito talento e sensibilidade para um autor só.
Porém, o Pessoa está a começar a ser mais um poeta
descaradamente de internet, talvez ele seja o precursor dessa moda de citações.
É engraçado ver como as pessoas usam os versos “(...) tudo vale a pena/se a
alma não é pequena” para qualquer coisa insana que vão fazer na vida. Eu
realmente tenho dó do Pessoa nestes casos.
Engraçado também é que circulam por aí versos do poeta como
se fossem conselhos, bons conselhos. E toda vez que leio isso nas redes sociais
me vem à mente o meu professor de Literatura do cursinho. Façamos uma pausa:
professor, nós já sabemos que chega uma hora na nossa vida que vamos ficar atordoados
devido a essa profissão; de Literatura, creio eu que qualquer pessoa com muita
afinidade com a Literatura tem uma sensibilidade aflorada, em alguns casos,
aflorada até demais; e de cursinho: ser professor de Literatura é muito bonito
e eu mesmo tenho aqueles sonhos de que irei revolucionar a vida de alunos com
essa Arte, porém, é bem possível que eu caia numa sala de cursinho, onde os alunos
são especialistas em conhecimentos escolares, o que seria ótimo, se não fosse
apenas para passar numa prova e depois todo o conhecimento será esquecido. Pois
bem, esse professor uma vez disse que tomava remédio tarja preta, aqueles tipos
de problemas psiquiátricos, e semanas depois ele disse que tinha abandonado o
tratamento, e agora seu terapeuta era Fernando Pessoa, porque ele sempre lhe
dizia a verdade, e não cobrava nada por isto. Passaram mais algumas semanas e
ele tirou licença.
Esse erro é inclassificável. Literatura não é para dar
conselhos. E agora essa prática virou mania. Acontece que Fernando Pessoa não é
bonitinho, e nem é obscuro. Fernando Pessoa defende em seus heterônimos o
descontentamento que é a vida, a falta de objetivos, o tédio em sua forma
geral.
Álvaro de Campos, por exemplo, vive a citar que queria viver
como antes, que o agora já não tem mais emoções. Ou então que ele tem uma ânsia
por querer sentir tudo, tudo ao mesmo tempo e de todas as formas. Ode Marítima é um ótimo exemplo para
essas lamentações:
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
O
termo “paquete” pode designar algumas metáforas, porém prefiro de além de
imaginar essa imagem como a é descrita, identifico o símbolo de memória, que
faz o eu-lírico lembrar sobre o seu passado, e por isso ficar aflorado.
(...)
soa no acaso do rio um apito, só um.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.
E o volante desse paquete que só o faz acelerar as
lembranças e com isso as emoções.
(...)
Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os
navios de vela!
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Atual...
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.
E agora o cinismo sobre o futuro e a vontade de voltar ao passado.
E ainda que Álvaro de Campos é o heterônimo moderno, aquele que mais se
aproxima com as ideias da vanguarda Futurista. É engenheiro, formado em Glasgow.
E mesmo com a sua formação e com todo o seu tom inovador é um desacreditado no
futuro, já está a cair no tédio da existência.
Álvaro de Campos é o heterônimo engenheiro, o acadêmico. Ao
contrário de Alberto Caeiro, pastor, ateu e ainda afirma que a leitura não leva
a nada. O heterônimo pastor defende a ideia de que só é real aquilo o que ele
pode sentir, logo Deus não é real, mas a relva e o orvalho das folhas são
reais, e ao ver e sentir cada um destes elementos o faz feliz. O poema a seguir, nomeado Quando vier a Primavera, exprime muito bem as ideias de Caeiro (além
de ser lindíssimo).
Quando
vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
Acho difícil alguém, depois de ler com
mais atenção essas poesias, ainda queira usar Pessoa como auto-ajuda, ou como
psicólogo.
Rafaelle Matos Medina
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