O submundo é um tema muito utilizado nas
Artes. Aliás, já temos que denominar aqui o que se trata de submundo neste
texto: é aquilo que é rejeitado pelo nosso senso, pela as nossas obrigações,
pelo o nosso senso cívico. O submundo foge às leis, é quando os seres humanos
agem sem se preocupar em serem julgados tanto pelos os outros, como por uma
ordem religiosa e pela justiça. O cinema sabe retratar muito bem esse ambiente.
Coração Selvagem, Assassinos por Natureza, Veludo Azul (a melhor mescla que me
lembro de submundo e mundo convencional)
ou Pulp Fiction, são apenas alguns exemplos cinematográficas desse
universo.
Porém, se o cinema nos mostra esse tema de
forma escancarada, a literatura talvez o faça com mais vigor ainda. Sendo ela
uma arte que retrate por si só o ser humano, seus sentimentos e sensações, daí
podemos dizer que esse tema dá assunto para muito autor e suas obras.
Claro, não podemos dizer que todo submundo
é o mesmo submundo. Há o psicológico, que eu não posso exemplificar de forma
melhor se não for através de um livro de Dostoievski, o “Memórias de
Subsolo”. O próprio título já diz sobre o que que será falado, se
interpretarmos subsolo como o íntimo da
personagem, isto é, o livro funciona como uma confissão. Magistralmente em
primeira pessoa, o narrador nos fala sobre a sua vida sem nenhuma grande
história, narra os seus dias, e os narra com um certo desdém, esbanjando
sarcasmo e senso crítico.
Esse
é o submundo que há dentro do narrador-personagem, dentro desse fracassado,
porém, lúcido, e talvez seja fracassado justamente porque é lúcido.
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Ainda
sobre essa esfera do psicológico podemos dizer sobre o clássico da literatura
Brasileira, “Dom Casmurro”. A história do traiu ou não traiu nem é algo tão
interessante, a ponto de perpetuar o interesse pela obra durante tantos anos (estão aí as
novelas, onde chove temas parecidos, que não me deixam mentir) porque o que
mantém esse livro interessante é a personagem Bentinho e sua consequente
narração. Este também narra sobre si sem medo do submundo das sensações. Sem
medo de julgar seus familiares, de acusar aquele amigo da família de
interesseiro, sem medo de usar a palavra “inveja”. Sem medo de confessar que
tentou assassinar o próprio filho. É o assumir-se o que de fato é, ainda que
com uma ponta de vaidade, Bento Santiago narra a verdade, melhor, a verdade que
ele vê. É o famoso “doa a quem doer”.
Porém,
não só de psicológico vive a literatura. E se já citei que David Lynch mescla o
nosso mundo convencional com o mundo obscuro das nossas vontades e
necessidades, o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, também mescla esses
dois mundos de forma excepcional.
Um
filho epilético que sai de casa porque se apaixonou pela a irmã. Esse é o
submundo da vida do filho, o mundo convencional está na figura do pai:
religioso, aquele que a toda refeição uni a família envolta da mesa para falar
da importância do tempo, e como metáfora usa os plantios e as colheitas. O conflito nem
é preciso dizer onde que ocorre. O livro tem uma linguagem diferente, é rápida,
é de muitas informações e sensações em poucas linhas. Aquela leitura que se é
feita rápida pode até deixar o leitor zonzo.
“Onde eu tinha a cabeça? Não tenho outra pergunta nessas madrugadas inteiras emclaro em que abro a janela e tenho ímpetos de acender círios em fileiras sobre as asas úmidas e silenciosas de uma brisa azul que feito um cachecol alado corre sempre na mesma hora a atmosfera; não era o meu sono, como um antigo pomo, todo feito de horasmaduras? Que resinas se dissolviam na danação do espaço, me fustigando sorrateiras a relva delicada das narinas? Que sopro súbito e quente me ergueu os cílios de repente? Que salto,que potro inopinado e sem sossego correu com meu corpo em galope levitado? Essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem pergunto, escavando a terra sob a luz precoce da minha janela, feito um madrugador enlouquecido que na temperatura mais caída da manhã se desfaz das cobertas do leito uterino e se põe descalço e em jejum a arrumar blocos de pedra numa prateleira;”
Lavoura
Arcaica tem disso, a sua linguagem (uma vez que literatura é mais linguagem do
que história) já revela o submundo, o tormento, a perturbação da personagem
central em relação à sua vida.
Através desses simples e corridos
exemplos, é possível perceber que se tem uma obra que está disposta a dizer
sobre o verdadeiro Homem, aquele que além de obedecer as ordens cívicas, também
obedecem os seus instintos, é a Literatura. Porque quando se diz sobre gente,
sobre pessoas, todas as roupas, cores e formalidades caem, sobrando apenas o
que é real. A nossa essência, o nosso submundo.
Rafaelle M. Medina
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