Uma noite, uma canção de ninar, uma orelha cortada.
La Berceuse |
La Berceuse é o retrato de Augustine Roulin – a matriarca da família Roulin,
que Van Gogh outras vezes já havia pintado, além de outros membros da família.
Vincent teve a ideia para o quadro quando conversava com Gauguin sobre o livro
Pescador da Islândia, de Pierre Loti. Vincent queria pintar «pescadores, que
são ao mesmo tempo crianças e mártires, (e) ao vê-lo do seu barco de pesca (...)
sentissem que estavam a ter de novo a antiga sensação de estarem no berço e se
lembrassem das suas canções de embalar».
Realmente, no quadro não há nenhum barco mas sim uma senhora que segura nas
mãos o cordão que embalava o berço de seu bebê. O próprio berço não está no
quadro, e o cordão é bastante sutil para quem desconhece a mecânica para
embalar um objeto que não está presente no campo da representação – assim nossa visão é também
de quem está a se embalar, de pescador em mar agitado.
Explicando mais tarde para Gauguin, Van Gogh afirma que tinha certeza « de
que se puséssemos essa tela tal como está num barco de pesca, mesmo na
Islândia, haveria alguns pescadores que iam sentir-se dentro do berço». Também
não era este conforto que Vincent procurava para ser acalmado?
O conceito que Van Gogh havia criado para La Berceuse não se resumia a
isto, ele intercalou inúmeras referências da história da arte e pensamentos
religiosos, buscava, até mesmo, que esta tela fosse equivalente a uma imagem do
cristianismo primitivo. Contudo, o que se via realmente era um retrato de uma
mulher em uma cadeira, notoriamente, um retrato com cores ousadas (de fato,
esta tela causou impacto em muito dos artistas mais jovens; Matisse, Edouard
Vouillard e Pierre Bonnard, mas mais sobre suas características formalistas, e não
conceituais).
«Os vermelhos que avançavam para o puro laranja, de novo se afirmam nos
tons de carne e vão até os crômios, passando pelos rosas e se misturando com
verdes-azeitonas e malaquite». Van Gogh
havia ficado satisfeito com o resultado, mas foi essa complexa combinação de
cores que o levou a procurar o olvido na embriaguez (mais o medo de que Gauguin abandonasse a casa, que algumas semanas ele havia o convidado para montar um
ateliê coletivo).
Naquela fria noite em Arles, no sul da França, Van Gogh iria cometer o
grande ato de loucura pelo qual ficou parcialmente conhecido: cortar uma orelha
(ou apenas o lóbulo, como aponta alguns historiadores). Gauguin conta que havia
sangue por toda casa, inclusive em frente a La Berceuse, o que significa que
Vincent estava olhando a tela enquanto se mutilou, ou esteve lá depois de se
mutilar.
Contam que na sua crise de loucura antes de cortar a orelha, Vincent Van
Gogh, que normalmente não cantava, tinha cantando uma velha canção de ninar,
porque imaginava «a canção que a mulher que embalava o berço cantava para
adormecer os marinheiros».
A história que se segue é bastante conhecida; Van Gogh embrulha o pedaço da
orelha e entrega para uma prostituta. Mas o que teria acontecido com Van Gogh
para fazer algo tão invulgar e bizarro?
Sempre que questionado, Van Gogh preferia não responder sobre aquela noite.
Juca L.