No Cinema, assim como em qualquer arte, não pode haver verdades absolutas.
Andrew Sarris e Pauline Kael |
Quando apresentado ao mundo (ou, pelo menos, à França), em setembro de 1895, o cinematógrafo era um experimento científico dos irmãos Lumière (deixemos de lado as controvérsias sobre o verdadeiro inventor), que não viam – assim como muitos jornalistas da época – um futuro artístico para a invenção. Mentes mais criativas, no entanto, enxergaram no equipamento um potencial. Entre eles, o pioneiro Georges Meliès, que, embora usasse o cinema apenas como um meio “diferente” para realizar seus ilusionismos, colaborou na criação do cinema ficcional. Ainda assim, por muito tempo, houve preconceito com o cinematógrafo e suas “crias”. Aos poucos, surgiu, finalmente, uma linguagem cinematográfica elaborada, criada por D. W. Griffith com “O Nascimento de uma Nação” – ainda que trôpega a princípio, flertando com o teatro e a literatura.
O que alguns ignoram, porém, é que um dos fatores predominantes para o reconhecimento definitivo do cinema como a “sétima arte” – ainda que Ricciotto Canudo tenha proposto o termo em 1911, não havia sido levado muito a sério - foi o levantamento da discussão sobre ele no meio acadêmico. Nos anos 30, quando o cinema já havia conhecido alguns dos seus maiores gênios, a crítica surgia efervescente e grandes revoluções na linguagem cinematográfica eram realizadas. Nesse contexto, a teoria do Cinema surgiu como um forte elemento de disseminação das ideias dos construtivistas russos, por exemplo, através do seu expoente principal, Sergei Eisenstein, o difusor da “montagem dialética”.
Com o tempo, a crítica cinematográfica tomou maior força, ajudando na evolução da linguagem cinematográfica, colaborando para fortalecer movimentos e promover debates. Por exemplo, o editorial da revista Cahiers du Cinéma, sobretudo o artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, de François Truffaut, inaugurou a política dos autores. Dessa forma, a revolução dos “jovens turcos”, dando origem à “Nouvelle Vague”, foi legitimada pela teoria de autores, termo empregado por Andrew Sarris, e a linha crítica proposta pela Cahiers – os lideres da vanguarda francesa, afinal, escreviam na revista.
POLÍTICA DE AUTORES E A CRÍTICA DE CINEMA CONTEMPORÂNEA
Alfred Hitchcock e Howard Hawks |
Evitar os extremismos das ideias de Andrew Sarris é sempre necessário. Por exemplo: a autoria não garante, necessariamente, qualidade ou imunidade crítica ao filme. Pelo contrário. Ainda assim, seguir a linha de Pauline Kael e abominar completamente a teoria de autores é besteira. É o que ocorre, atualmente, em uma parcela considerável da crítica de cinema brasileira na internet (onde se encontram os melhores escritos da área) – a imprensa “oficial” dos jornais e revistas está em grande parte presa a resenhas onde apenas o roteiro é levado em conta, em análises geralmente rasas. Estão tornando o cinema uma “ciência”, na qual apenas a técnica é levada em conta. Assim, críticos acostumados com esse estilo negam absolutamente a teoria de autor. Para eles, o figurinista é tão importante quanto o diretor do filme. É mais do que tratar cinema como arte coletiva (porque, de fato, o é – e assim deve ser considerado): trata-se duma ingenuidade que tira toda a hierarquia da produção de um filme. Que eu seja protecionista, extremista, radical: acredito piamente que o diretor (o autor, não o diretor de estúdio; o verdadeiro cineasta) é a mente máxima num filme. Não o dono da obra, mas o seu maior criador. O diretor é a mãe que dá à luz (bem, literalmente) ao filme. O roteirista, em alguns casos, é o pai. E o resto da produção ajuda no trabalho de parto, em diferentes graus de importância (o montador, por exemplo, é fundamental).
Ora, veja: mesmo quando se trata dum roteirista expressivo como Charlie Kaufman, o diretor ainda tem um peso grande no produto final – vide “Quero Ser John Malkovich”, de Spike Jonze. Os detratores da teoria de autor acusariam, provavelmente, “Encurralado”, de Steven Spielberg, de ter um roteiro “raso”. Ou detestariam, quem sabe, “A Idade da Terra”, de Glauber Rocha, por se tratar dum filme sem um enredo específico, sendo uma experiência puramente audiovisual (no sentido mais profundo da palavra). Aliás, o próprio Glauber dizia que Cinema é isso: imagem e som. Como discordar?
Cena do filme "A Idade da Terra", de Glauber Rocha |
Essa tendência de contemplar somente a técnica do filme beira a alienação. É acrítico. E torna a crítica muito mais hermética, fechada a pequenos clubinhos que entendem o que lá está escrito. Há que se analisar a técnica também, não somente, tampouco sobretudo. E, sempre, relacionar conteúdo-imagem – algo que parece evidentemente indissociável, mas, para alguns críticos, não é. Como propõe o crítico brasileiro Pedro Henrique Gomes, do blog Tudo é Crítica, se não houver análise do “autor, da obra e da ideia” do filme, não é crítica. Ou seja, a forma, é claro, deve ser levada em conta – é essencial na análise fílmica. Deve-se analisar, portanto, a obra em si, saindo da superfície e indo direto ao seu âmago, expondo, quando necessário, sua posição política, social e cultural.
Torna-se mister, dessa forma, resgatar, nem que sejam resquícios, a política de autores para a crítica atual. A proposta desta não é impor uma verdade absoluta (o que gera certa antipatia por uma parcela do público de cinema em relação aos críticos) e sim o debate. Já essa tendência “científica” da crítica de hoje dificulta a discussão e fecha o texto em si mesmo. Renegar absolutamente a teoria de autor é (quase) uma autossabotagem.
Ao contrário do que Jean-Claude Bernardet propôs, não é possível à crítica “orientar artistas”; o intuito não é esse. Contudo, em tempos de arte como mercadoria, é importante uma crítica ativa que afirme a posição do Cinema como sétima arte, colabore com suas evoluções artísticas e perpetue o diálogo de argumentos. Sem isso, não há espaço para a diversidade de opiniões, que é o oxigênio de qualquer arte – inclusive a sétima.
Júlio Pereira,
Equipe Lumi7
Texto originalmente publicado em http://www.lumi7.com.br/cinema-nao-e-ciencia-tendencia-da-critica-de-blogs/.