Em 1975, aos 54 anos, um ano após ser demitida do Jornal do Brasil, no qual escrevia semanalmente, Clarice Lispector dizia-se cansada da literatura, chegou a declarar que provavelmente não voltaria a escrever. Por um período deste ano, a escritora dedicou-se aos pincéis. De guache seguindo as nervuras da madeira, as telas produzidas por Clarice revelam uma grande sensibilidade. As telas, em geral abstratas - alguns levam inúmeras cores, outras bastante sombrias, são acompanhadas de títulos dado pela própria escritora e carregam o mesmo fascínio de algumas de suas obras literárias.

Em uma de suas telas, intitulada Medo, com data de 16 de maio de 1975, uma figura central amarela, com olhos e bocas, sobre um fundo negro produzia um grande estranhamento em Clarice. Ela fala; “Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama “medo” eu conseguiria pôr para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo pânico de um ser no mundo”.


A relação de Clarice com a pintura já havia dada os primeiros passos desde a época de Água Viva, livro publicado em 1973. No livro a narradora é uma pintora, e logo é introduzido por uma citação de Michel Seuphor da ideia de uma pintura totalmentelivre da dependência da figura - o objeto - que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito”.
Explosão
Medo
Pássaro da Liberdade


 “Sem ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, “quadros”, a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso alguma. É a coisa mais pura que faço”.

É verdade que Clarice não tinha qualquer formação em pintura, mas isso não quer dizer que ela não possuísse técnica. Em Um Sopro de Vida, obra com referência também as artes visuais, Clarice escreve:

“Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei mais o que eu inventei em matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvir falar desse modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho de riga é a melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade”.

Na biografia da escritora, escrita pelo americano Benjamin Moser, o autor analisa o método das pinturas de Clarice e sua relação direta com o subconsciente. "É uma maneira de pintar oposta ao trompe-l’oeil, recurso que dá ao espectador a impressão de estar diante de um objeto que não existe. Ou seja, também nos quadros de Clarice existe a tensão entre real e inventado que marca sua produção literária", diz o autor.

Desde sua necessidade em buscar outro meio, mesmo na linguagem verbal, a escritora buscava representar “o símbolo da coisa na própria coisa”, sem que lhe escapasse o sentido, e talvez a pintura fosse uma forma de alcançar seu objetivo mais direto. “Meu ideal seria pintar um quadro de um quadro”.

A passagem de Clarice na pintura, dois anos antes de sua morte, em 1977, é fascinante, não apenas pelo resultado de suas produções pictóricas, mas por obras posteriores como Um Sopro de Vida ou a famosa A Hora da Estrela, em que Clarice recorre sempre ao termo «Explosão», termo também o qual ela intitulou uma de suas telas.






Dezesseis telas de Clarice foram expostas em 2009 no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, na exposição “Clarice Pintora”. Além de Clarice, diversos escritores enveredaram para o campo das artes plásticas, como Kafka, Victor Hugo, Dostoievski, Allan Poe, Ferreira Gullar...

Juca Lordello.


P.S: Na obra A Hora da Estrela, cada vez que a escritora utiliza o termo «explosão», vejo Clarice segurando seus pincéis a produzir a tela homônima. Uma linda animação imaginativa.

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