Cena do filme "Aruanda". |
Com os curtas
Aruanda (1960) e Arraial do Cabo (1959), Linduarte Noronha, diretor do
primeiro, e Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, diretores do segundo,
antecipam uma discussão proposta por Ferreira Gullar em seu escrito “Cultura e
Nacionalismo”, parte de seu livro de 1965 “Cultura posta em questão”.
Nele, Ferreira
Gullar põe em xeque a formação da identidade nacional à frente do processo de
internacionalização da cultura brasileira, muito presente no campo das artes.
Para o autor, o artista nacional engajado deve travar uma luta contra o
imperialismo e contra o próprio governo, que tacha como “inimigo dos interesses
do país” aqueles que tentam enfrentar a dominação dos meios de divulgação.
Deve-se ter em mente, ainda, que a data do escrito é de 1965, um ano após a
tomada do governo pelos militares. Dentro desse contexto, uma das funções da
cultura popular torna-se o esclarecimento da opinião pública e, para exercer
essa função, ela usa de todos os meios possíveis, desde a prosa até o cinema. É
especialmente dentro dessa conjectura que se projeta o principal aspecto da
cultura popular: seu caráter nacionalista é definido pela visão básica da
realidade e não por elementos como tradicionalismo, chauvinismo ou
nacionalidade. É a realidade do país e a consciência desta que une o povo
brasileiro e que faz com que todos compartilhem da mesma cultura.
Os curtas
“Arraial do Cabo” e “Aruanda” sublinham tudo o que Ferreira Gullar afirma
acerca de independência cultural. Eles ainda contribuem para a formação da
identidade nacional numa antecipação do Cinema Novo. “Aruanda”, de Linduarte
Noronha, tem como temática a vida de ex-escravos no Quilombo da Talhada, os
quais, por meio da fabricação e venda de cerâmica como atividade de
subsistência, sustentam um modo de vida considerado atrasado. Eles representam
a “civilização na idade do barro”. O curta começa com uma família de negros
indo para o quilombo. Lá, eles vivem isolados e se sustentam por meio da
cerâmica. O final do filme mostra seus descendentes vendendo suas cerâmicas em
uma época contemporânea à do curta, estabelecendo um ciclo de pobreza e
marginalização de séculos a séculos. A presença da realidade nacional e da
própria crítica a esta é gritante nesse curta, que expõe os problemas de uma
democracia ainda atrasada. Democracia esta que, mesmo após a abolição da
escravatura, ainda marginaliza e isola a população negra.
Cenas do filme "Arraial do Cabo" |
“Arraial do
Cabo”, de Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, trata da instalação de uma
fábrica numa vila de pescadores e de suas consequências, tais como
transformações sociais, na sua forma de vida primitiva. O curta é dividido em
três eixos. O primeiro deles aborda a chegada da fábrica e a presença de
operários na vila; o segundo, a vida tradicional que os pescadores levavam e o
terceiro, a junção desses dois mundos: o operariado decorrente da
industrialização da vila com o retrato do pescador tradicional. O curta
antecipa o movimento do Cinema Novo justamente por tratar de um tema
tipicamente nacional sem nenhuma influência externa e, ainda, atual para a
época por explorar o choque da industrialização sobre atividade tradicional
(pesca). Todavia, tanto “Arraial do Cabo” como “Aruanda” não fazem um grande
esforço para retratar tais temas, tipicamente nacionais; a temática dos filmes
se mostra como algo intrínseco a eles, algo lógico de ser retratado. De acordo
com Glauber Rocha, ícone e principal referência do Cinema Novo, em artigo para
o Suplemento Literário do Jornal do Brasil (1960):
A modernidade em
Arraial do Cabo está na inventiva em progresso, na autenticidade dos criadores
que esqueceram os mestres [...]. E é desta independência cultural que nasce o
filme brasileiro. Não porque tem temas nacionais, conforme ditam teóricos do
nacionalismo [...]. A estes reformadores, que desconhecem a revisão histórica
da cultura brasileira, gostaríamos de lembrar que hoje José de Alencar
escreveria sobre favela, se em seu tempo escreveu sobre Iracema. E que favela
não é bossa nova. [...] A arte brasileira precisa se nacionalizar através de
sua linguagem, de sua forma, de sua expressão, porque os temas nacionais são
logicamente os temas que envolvem o artista.
Logo, “Arraial
do Cabo” e “Aruanda” não têm papel definitivo somente na formação da identidade
nacional por meio dos temas abordados. Mesmo dispondo de baixos recursos e
contrários à forma de cinema vigente na época (o norte-americano, importado,
internacionalizado), eles ainda contribuíram na criação e desenvolvimento de
uma nova estética, linguagem e arte no cinema brasileiro.
Por Marina Kosa,
Equipe Lumi7.
Equipe Lumi7.
Texto publicado originalmente em http://www.lumi7.com.br/aruanda-arraial-do-cabo-e-a-formacao-da-identidade-nacional/